sexta-feira, 17 de abril de 2009

31 de março é aqui - I e II



Ensaio de Ben-Hur Demeneck publicado no Diário dos Campos, de Ponta Grossa/ PR. Link :http://www.dcmais.com.br/index.cfm

Parte I - 5 de abril de 2009.

Passamos por uma semana em que o calendário marcou 31 de Março e 1º de Abril, datas em que tremem as lâmpadas pela passagem dos blindados. Há 45 anos se deflagrava o golpe militar no Brasil, uma presença autoritária mantida por 21 anos seguidos. Esse artigo pretende levantar discussões dentro do contexto desse aniversário, procurando uma resposta para o seguinte ponto: por que se evita o diálogo franco sobre esse passado?
Entre os vespeiros, há a revisão da lei de Anistia e o acesso a documentos de estado mantidos na condição de confidenciais. Para mexer com os ânimos, a Folha de S. Paulo publicou um editorial com o neologismo "ditabranda" (17 Fev). Ela se referia ao teor da tirania brasileira em relação aos seus símiles na América do Sul, segundo sua opinião. Apenas foi mais um sinal de alerta sobre como o período 1964/1985 é discutido, estranhamente.
Em nosso artigo seguinte, mais narrativo e menos expositivo, trataremos da escolha do nome 31 de Março para um núcleo habitacional de Ponta Grossa, recomendaremos a leitura de textos que repercutiram a "ditabranda" e comentaremos um movimento poético sitiado na internet, protestando contra o autoritarismo. Agora nos concentremos no crescente interesse do brasileiro em estudar a história recente, observando com atenção para aquela época sem eleições democráticas, tempo de censura na imprensa e nas artes, palco vergonhoso da tortura e do exílio contra tantos opositores.
Espantosamente, ao se procurar uma análise criteriosa daqueles anos, muitos bradam furiosos expressões como "revanchismo" e "discurso de quem não aceita a derrota". Em 7 de Agosto de 2008, o Clube Militar do Rio de Janeiro organizou em seu salão nobre um evento típico dessa reação. A atividade confrontava tentativas de revisão na lei de Anistia. Um dos palestrantes apontou conexões entre os ataques do PCC de São Paulo com as Farc, IRA, ETA e governo Lula. Uma fantasia da qual Júlio Verne seria incapaz. E complementou – estaria em curso um processo político de "violação dos princípios básicos do Direito". Ou seja, as velhas afirmações golpistas, no melhor estilo de que o inimigo avança firme e silencioso. A plateia aplaudiu. Já o palestrante general Coutinho sustentou outra tese: o coronel Brilhante Ulstra é "alvo enigmático das torturas no Brasil". Talvez porque este seja acusado de ter participado na morte de 40 presos políticos e da tortura de outros 502, entre 1970 e 1974. Talvez devido a uma patente indisposição de passar cada história a limpo.
As Forças Armadas são fundamentais em qualquer país, agindo desde as questões mais elementares de territorialidade até a prestação de ajuda humanitária e contenção da violência, como nas incursões de paz em Angola e no Haiti. No entanto, grande parte da sua credibilidade se arranha por toda a América do Sul por haver quadros adversários de morte da transparência. Por consequência, o cenário fica bem iluminado – joga-se na lama a reputação das Forças Armadas. A cumplicidade com torturadores, assassinos e corruptos é inadmissível a elas, como a qualquer instituição. E não dá realmente para entender porque há tanto medo de passar em revista uma lei gestada no auge da arbitrariedade, totalmente imoral. Se o medo paira sobre a impunidade quanto aos "crimes dos movimentos de esquerda", pois que sejam julgados também. Que se supere esse passado autoritário pela verdade, punindo os criminosos de quaisquer lados e ideologias. Mesmo sob o argumento estúpido da guerra, lá estariam as Convenções de Genebra para frear atrocidades, lá haveria um tribunal de Nuremberg para os esclarecimentos.
Como uma referência de coragem para esse enfrentamento, podemos considerar o discurso de promulgação da Constituição em 5 de Outubro de 1988. Uma atitude que vai além de seu orador, Ulysses Guimarães, sendo simbólica a toda a nação brasileira:
– A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais [palmas]. Afrontá-la nunca! [palmas]. Traidor da Constituição é traidor da Pátria [palmas]. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério [palmas]. (...) Após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra. Temos ódio à ditadura; ódio e nojo! [palmas].
Uma instituição séria jamais teria medo da verdade, sabemos. Tampouco um país. Se hoje o Brasil se pergunta sobre seus 21 anos de autoritarismo é porque está maduro para olhar para dentro de si e fazer uma análise, com o interesse próprio de quando as respostas que dispõe são insuficientes. Diz respeito a cada brasileiro dimensionar esse passado sem revanchismo, sem ódio, pesando esses fatos pelos valores da justiça. Uma luta pelo diálogo amplo e franco sobre quem somos e o que fizemos.

Parte II - 7 de abril de 2009.
Ponta Grossa tem um núcleo habitacional com o nome do golpe militar que derrubou o presidente João Goulart, iniciando uma era de 21 anos de autoritarismo. No contexto de 45 anos dessa ação, há uma enxurrada de manifestações públicas, demonstrando o crescente interesse do brasileiro por conhecer a sua história, embora uma pergunta se mantenha em aberto: por que se evita um diálogo franco sobre o período 1964/1985?
Sobre essa questão, recomendo a leitura de nosso artigo anterior, destacando como uma atitude de maior transparência por parte das Forças Armadas traria para elas uma credibilidade à altura da sua missão com o país. Embora seja evidente o protagonismo militar, é sabido que o golpe se deu e se manteve a partir de apoios conservadores em diversos setores sociais. Em comum, uma mesma indisposição em esclarecer sobre esse passado. Logo, neste texto optamos pelo encontro de algumas narrativas, pequenos passos no campo da memória. Uma trata de um núcleo residencial, outra envolve um artista do Pará e, por fim, citamos um deslize de um jornal de referência nacional.
O núcleo 31 de Março foi inaugurado no bairro Neves, em 1967, região quarentona com direito a linha de ônibus. Um visitante de outra cidade ao cruzar com um coletivo estampando o golpe em letras graúdas, há de procurar madeira para bater três vezes antes mesmo de ser avisado da área residencial. No álbum de Ponta Grossa edição 1967/1968 se diz, em letra de forma, "dos 142.000 habitantes da Princesa dos Campos 6.552 habitam nas casas populares financiadas pelo BNH e construídas pela COHAB-PG nos núcleos ‘31 de Março’ e ‘Operários do DER’". A "vida nova" para os milhares de mutuários envolvia o pagamento de uma prestação simbólica, aceitar uma nomenclatura forjando uma identidade. A escolha saiu pela culatra, configurando um modo grosseiro de impor vantagem, uma autoafirmação típica de quem duvida do reconhecimento alheio – corriam apenas três anos entre o fato e a homenagem. Numa ocasião de entrevista, um dos moradores dessa região me declarou a sua opinião: quem sofreu mais mesmo foi o intelectual, para o trabalhador a ditadura até foi boa. Embora seja um comentário recorrente, perde crédito ao se constatar que só valeu aos operários enquadrados nas orientações autoritárias. É exemplar o caso de Manuel Fiel Filho (tão suicida quanto Herzog) e também os maus bocados enfrentados por líderes populares e sindicalistas.
Sobre as interpretações daquele período, recentemente houve um episódio ilustrativo dos desencontros com nossa história. Em editorial, a Folha de S. Paulo se referiu à ditadura brasileira como "ditabranda" (17 Fev). Parte da argumentação era que o número de assassinatos cometidos pelo Estado ficava na faixa das centenas, enquanto que no Chile, Argentina e Uruguai a conta ficou nos milhares. A "ditabranda" teve vários desdobramentos, com parcial retratação do veículo e uma enorme vazão de artigos pela imprensa e pela internet. Altamente recomendados para leitura são três textos disponíveis no Observatório da Imprensa: "Descansem em paz: não seqüestraremos a História", de Washington Araújo (17 Mar); "A grande mídia e o golpe de 1964", de Venício de Lima (17 Mar), e "1º de abril, dia da mentira na hora da verdade", de Alberto Dines (31 Mar).
Pelo mundo da web, circulou também uma manifestação poética sitiada inicialmente num blog. Administrado pelo artista paraense Arthur Leandro, a página traz uma expressão coletiva de "uma geração que cresceu sob o regime de violência ditatorial militar". "Criado-Mudo" convidou internautas a enviarem por e-mail suas datas de nascimento (entre 1964 e 1985) e uma fotografia ao estilo 3 x 4, com o detalhe da boca amordaçada. Com esses dados, Leandro confeccionou cartazes padronizados, bastante simples e comunicativos, deixando-os disponíveis para download. Para uma folha A4, cada um traz um rosto no centro da página, um título garrafal na parte superior ("criado-mudo") e, no rodapé, a frase "nascido na ditadura – 19xx", com a data correspondente ao colaborador. Nascido em 1967, Leandro hoje atua como professor universitário da UFPA. Compartilhou na net uma experiência vivida pelos seus 11 anos, onde teve a prova que era impossível discordar do discurso oficial, mesmo numa fase da vida em que desconhecia palavras como militância e ativismo. Apenas pensava e era curioso, como as crianças fazem quando não são reprimidas. Assimilando a época, reconhece ter crescido num modelo político orientado a emudecer focos de pensamento divergente – vide www.criados-mudos.blogspot.com.
A ditabranda da Folha, o criado-mudo de um blog e a nomenclatura ostentatória de um núcleo residencial em Ponta Grossa são sinais da permanência do período de autoritarismo e das meias-explicações que deixou. A afirmação da liberdade de opinião e do diálogo, consagrados na Constituição de 1988, nos faz viver um tempo em que é comum almejarmos o entendimento de quem somos e do que fizemos. Sem ódio, o Brasil vive a maturidade de quem procura ser justo consigo.
O autor é jornalista

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